terça-feira, 2 de setembro de 2014

Trinta fichas


Um olhar ( tirada em voga  no século 21)   sobre a avenida...
Avenida longa,  pedestre aflito. Do alto, o relógio gozava daquela afobação-  ponteiros  uniformemente acelerados , versus passos doidos para vencer  quarteirões, crescendo!
  Bonde  aliviaria ,   machucando minguado ordenado. Porque não,  bicicleta ?
Porque ainda não era moda em Paris, nem Milão., Berlim, ou  ilhas Galapagos.
Quem aguardava o ansioso pedestre só poderia ser o Arquivo Genial, AG, entre os íntimos. O trabalho haveria de ser árduo para justificar os miúdos proventos mensais,  vulgo salários. Se desconto houvesse, a culpa recairia sobre a nefasta existência de ponteiros nos relógios ou à deficiência na  prática da corrida de fundo  pelo aflito.

...

O  salão que abrigava o AG e ponha-se superlativo nisso, era inefável.Arquivos  aos montes,  escrivaninhas aos montes, cadeiras aos montes.Um verdadeiro monturo. Maquinas de escrever, não     podiam ser   ditas aos montes porque estavam montadas e fixas nas respectivas mesas. Montoeira de prateleiras, em rede,  premonição  do tal “net.”.
  No meio de tudo os operadores    respectivos  - os  extra-quadros - pois que era época extraordinária, inclusive dos extra ordinários Emocionante era o dever de cada um deles - preencher datilografando, 30 fichas  por expediente noturno de 4 horas, portanto  razoável , sem qualquer intuito de  atividade superior ao bom descanso, porém.
O agradável  do grupo  de extra-quadros  era ser de estudantes , na maioria.“Bando de notívagas”, no sentido de vagabundos noturnos, para os outros desagradáveis. Um, psicodélista,  jeitão do Felix, da TV. Dois, o  exímio datilografo, taquigrafo, apostilhista..  Três, o tenor, pianista,. quatro,  cinco , até dez , qualquer adjetivo com algum” ista”, como sufixo.
Todos sob o comando  do tacanho Chefinho, e sob o taco  do  Poderoso Chefão . Um não gostava do outro e ninguém   gostava . dos dois.   E   meta única para toda gente: “deixar como está para ver como fica” (  aproximado de Lampeduza).
O Chefão, porque poderoso, era vaidoso entre outros “osos”. . Chapéu Borsalino (modelo 1930), do vizinho e futuro defunto, prescrição de sua pitonisa, lhe caia  como   uma luva, durante o frio;   no calor  apertava como enxaqueca.  Em contradição,  no frio ele era mais caloroso com os seus funcionários: 
- Seu Borsalino como lhe fica bem o  chapéu,  até lembra o  Maurice Chevalier!
-Nem tanto, nem tanto, meu filho.

  Ou, por um lapsus linguae:
 -Seu Boçalino ....
-Eu te puno, eu te puno seu...
O Chefinho,  era bem caracterizado pela sua voz de comando, sempre acatada com algumas restrições. Desde o início, meio e fim do expediente, percorria as mesas dos seus extra-quadros emanando a profícua ordem de serviço – “ vamos agarrar” 
Desse modo,  as respostas só poderiam ser  satisfatórias:
  -e eu com isso, dizia quem dormia;
- grande coisa, respondia  quem não estava acordado;
-  é curioso,  cochichava o que estava com sono.
No caso do tenor, a resposta era cantada: uma área de ópera (não, não) , uma quadra de Nhô Totico ( de lirismo camoniano para estimular  bom humor):
 pé de laranja sempre deu laranja  , pé de goiaba sempre deu goiaba,
o que  me implico é com pé de eucalipto, que nunca deu  e não dará jabuticaba...
ou um trecho patriótico, como “ heroicobrado , berçooesplendido “  (pronunciados sem    o espaço devido, para assustar ou induzir o sono)
Fervorosa ladainha  se repetia  a toda hora   e acabava com o chefinho debruçado sobre a escrivaninha , resmungando: “assim não dá – prefiro  cursar odontologia por correspondência”...
      *
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Com  fito de exteriorizar    talentos , produziam     um  diário da noite acerca do cotidiano,  para ser lido no sábado à tarde – A Voz  do AG,  adaptado de  um filme mudo  Vozes vociferantes.
E´ conveniente  que o leitor  suspire   por     5  segundos  em solidariedade  a  tantas vozes.
Igualmente será   gratificante   que se tome conhecimento de algumas noticias publicados no referido periódico, sem duvida, poderosas para enriquecimento do acervo cultural de  todo cidadão.
* À  semelhança de um   grande frentista de Trás os Montes  implicado com   a quadratura da roda , um  extra-quadro  moreno ingressou na Usp através das notas 1 , 0,5 e l, mercê  exagerado  aumento de vagas. Alegre, ulteriormente, chegou a desembargador no  seu estado.Boa pessoa , além do mais.
* Pela primeira vez um duque de dezena (macaco a cavalo) leva  à Europa, um extra-quadro. Escala no Rio, embarque do   novo companheiro transatlântico. Já  no hotel   optaram  por  um único quarto ( single, para o recepcionista lusitano) , econômico  para  os dois , apesar de haver  apenas uma cama, de casal! .
Amanhecer  em Portugal! Ah! Pedro Álvares Cabral!
Ele acordou cedo,  em compensação o outro dormia para o resto da  vida ! 
No distrito policial – ele e o companheiro transcendental. já solenemente encaixotado.
Delegado: –  Vossa Senhoria terá que acompanhar  o finado.O resto é prá  lá,. em seu país.
Ele: - Sei nada  sobre este infeliz, nem tenho nada com isso, foi um acaso .
Delegado: Só por acaso, nenhum elemento dorme junto com outro, a não ser que esteja feliz. Meus pêsames e boa viagem.
 Na segunda feira seguinte,  enquanto datilografava a primeira ficha,  ele recebia as devidas condolências pela “mortalidade” que atingiu o seu esquisito  companheiro de viagem.
* Certo que não conseguiria fazer alguém agarrar, o Chefinho  tentou agarrar-se a um cargo melhor,  a conselho  da pitonisa do Chefão.Assim, obstinadamente, agarrava o D.O., no aguardo de nomeação. No domingo saiu o preenchimento por outro e, na terça-feira, como consolo, o esclarecimento de que a vaga pleiteada   não existia. E na quinta, uma jogada política  “o candidato não conta com o apoio do Partido”
Consternados  com esses magníficos incidentes, os colegas, em peso, subscreveram   atenciosa moção: “  agora  é  a vez  de você agarrar  alguém  pelo pescoço”,  parabéns antecipados.
           *  -  Sou espanhol d’Espanha.
-  E´ lógico, não precisa reafirmar.
-  É  que  todos me chamam de espanhol de outra coisa.....
             Com efeito, o tal sobrenome era cabível. – ao invés de  datilografar 30 fichas,  ele perfazia 150 ou mais nas 4 horas de trabalho o que nivelaria o teto por cima . 
    Caxumba e quebranto  lhe conseguiram  a  exoneração   do serviço público..
Insuportável  era o cheiro de corpo e  cigarro do Cheirosinho.Ele  permanecia nos poleiros remexendo a papelada, coisa que nenhum dos outros se propunha..   Bom banho,  e acidental ferimento concorreram para  sua.  demissão, aceita  a contra-gosto e/ou contra- cheiro. Regiamente  compensado, entretanto, com doação perpetua de charutos cubanos,  pela família abonada., e uma caixa de sabonetes argentinos, como desagravo da Voz do AG.  
* Em vez da tradicional peruada, acadêmicos promoveram faustoso jantar de faisões, engordados nos jardins da Água Branca..O governador compareceu ao rega bofe. Bom  político, não deixou transparecer indignação quando soube que acabava de se enlambuzar com   asas  fritas de suas aves de estimação..
* Na quarta feira,  às 22 horas,  nenhum dos colegas foi ao jantar  rotineiro  -café com leite, pão com manteiga-  no bar da esquina. Comemoravam o  40° aniversário do Conde ( humilde,  colarinho duro e porte de nobre, pobre). Seu lanche imutável  era meia porção de goiabada ( 2,0 quilos por semana). Porções desta, em pacotinhos, gentilmente enviadas pela mãe,  fizeram a festa..Foi uma verdadeira marmelada! 
     *
O“ The end” começou num  sábado.      
Dezesseis horas e poucos minutos,  os extra- quadros se despediam , já um pouco saudosos  - não retornariam  nas futuras   segundas-feiras.
Aqueles que tomaram o bonde que fazia o retorno, ficaram  em pé, na cabina posterior, donde o  psicodélista, gargalhando, passou a descompor    um  carregador de dormente:   :” vamos agarrar, vamos agarrar,  força molenga. Assim não dá...” Enquanto o bonde se afastava , o neo desafeto avançava com uma corrente na mão e ódio no olhar... 
Acaso,  Inesperado,   e  Coincidência ,  três trânsfugas  Cavaleiros do Apocalypse se uniram ao Quarto Cavaleiro, o  motorneiro, obrigado a estancar. de  súbito  - falta de força no cabo elétrico ou excesso de força no cabo do freio. 
Cena coincidente com a presença de um cinegrafista filmando:  em vermelho, a careta do desafeto; em  branco, como véu de noiva, a cara do pré-afetado, noiva,  em preto,  seu  braço direito  em 90 graus e mão  esquerda em 45 graus, a um passo    de completar  a última banana!
Mas,  tudo  faz crer que a força elétrica voltou antes do pior...              
Assim,  prometendo reencontros periódicos, os bacanas extra-quadros desapareceram, como  tudo que some. Talvez se reencontrariam...
Um outro olhar. Ponteiros do relógio altaneiro,  indiferentes, marcavam 20 horas.    Via látea não havia acordado e a lua dormia do lado oposto. Escuridão noturna, é claro. 
Naquela avenida comprida,  por aqueles quarteirões intermináveis, passeava um   sobrevivente  extra-quadro, caminhante aflito dos tempos idos. Não ligava para os ponteiros do  relógio   acima, e estes  pouco  se importavam  com o  debaixo. Cercado por todos os lados pelos apressados, ele  dizia para si mesmo:”grande coisa”.
Barulho multifário  - gente em todos  sentidos, carros para lá e para acolá,   metrô lá nas profundezas!
Súbito,  um  cometa,   tal e qual  ao que a gente imagina,     como um jegue luminoso cavalgado por  um dos  extra-quadro, velocíssimo,  atravessa o céu..Ninguém  o via, ouvia ou sentia, exceto o sobrevivente,  por definição,. único remanescente  dos bacanas do AG.  Seu   pé direito descia sobre o asfalto, enquanto o outro ainda  se apoiava na beira da calçada,  quando, abruptamente, um carro em louca disparada , por pouco não o despedaça, e mais loucamente, ainda, desaparece  ao longe, feito um ponto preto ou uma meia virgula escura.
 Grande susto e um instantâneo  revelador:
- Oi, você ai  meu velho, quê andas fazendo que ainda não veio? Brada o cavaleiro do  cometa.
 - Oh! Meu caro , como vão vocês?
- Muito bem. Não temos  fichas,nem maquinas de escrever ,nem superstição!  Não existe  causa e efeito,  as coisas acontecem  imperceptíveis  - o que  não falta é    um pouco de felicidade para todos, conforme a índole e a necessidade de cada um. A gente adora o poderoso,  todo paisão  - nunca aparece, mas têm-se certeza que está sempre conosco....
-   Maravilha,  parece  celestial!
- Pois é , adiantou o cavaleiro ex-ex.  Eu estava encarregado de transporta-lo, mas você  não  entrou com o pé esquerdo no asfalto...
E o cometa some para  o outro lado, feito um ponto incandescente ou uma  meia virgula  brilhante.
Pedestres mais próximos param assombrados.
E, mais ainda, quando notam a feição alterada do velho, que logo se recompõe –com um sorriso, e uma fala em surdina:
  -Todos já  se foram, que pena! Mas, antes eles do que eu...

Luis Gastão  Costa Carvalho Serro-Azul  SP. 13/08/1943 -13/08/2014

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